As bombas desejam explodir
Há 65 anos, em 6 e 9 de agosto de 1945, os americanos destruíram Hiroshima e Nagasaki. Todo ano me repito e escrevo artigos parecidos sobre a bomba nessas datas, não para condenar um dos maiores crimes da humanidade, não, mas para lembrar que o impensável pode acontecer a qualquer momento.
Agora, não temos mais a Guerra Fria; ficamos com a guerra quente do deserto - a mais perigosa combinação: fanatismo religioso e poder atômico. Vivemos dois campos de batalha sem chão; de um lado, a cruzada errada do Ocidente, apesar e além de Obama. Do outro, temos os homens-bomba multiplicados por mil. E eles amam a morte.
Hoje, já há uma máquina de guerra se programando sozinha e nos preparando para um confronto inevitável no Oriente Médio. Estamos num momento histórico, em que já se ouvem os trovões de uma tempestade que virá. Os mecanismos de controle pela "razão", sensatez, pelas "soft powers" da diplomacia perdem a eficácia. Instala-se um progressivo irracionalismo num "choque de civilizações", sim (sei do simplismo da análise do Huntington em 93, mas estamos diante do simplismo da realidade), formando uma equação com mil incógnitas impossíveis de solucionar. Como dar conta da alucinação islâmica religiosa com amor à morte, do Paquistão, Índia, Israel, do Irã dominado por ratos nucleares em breve, da invencibilidade do Afeganistão, com a hiperdireita de Israel com Bibi, com o Hamas ou o Hezbollah que querem impedir o "perigo da paz"?
"There is a shit-storm coming" - disse Norman Mailer uma vez.
Tudo leva a crer que algo terrível acontecerá. A crença na razão ocidental foi ferida por dois desastres: o 11 de Setembro e a invasão do Iraque. A caixa de Pandora que Bush abriu nunca mais se fechará.
Estamos às vésperas de uma brutal mudança histórica. Sente-se no ar o desejo inconsciente por tragédias que pareçam uma "revelação". Surge a fome por algo que ponha fim ao "incontrolável", a coisa que o Ocidente mais odeia. Mesmo uma catástrofe sangrenta parecerá uma "verdade" nova.
Vivemos hoje na era inaugurada por Hiroshima. Lá e em Nagasaki, três dias depois, inaugurou-se a "guerra preventina" de hoje. Enquanto o Holocausto dos judeus na Segunda Guerra fecha o século XX, motivado ainda por contradições do século XIX, o espetáculo luminoso de Hiroshima marca o início da guerra do século XXI. O horror se moderniza, mas não acaba.
Auschwitz e Treblinka eram "fornos" da Revolução Industrial, eram massacres "fordistas", mas Hiroshima inventou a guerra tecnológica, virtual, asséptica. A extinção em massa dos japoneses no furacão de fogo fez em um minuto o trabalho de meses e meses do nazismo.
O que mais impressiona na destruição de Hiroshima é a morte "on delivery", "de pronta entrega", sem trens de gado humano, morte "clean", anglo-saxônica. A bomba norte-americana foi considerada uma "vitória da ciência".
Os nazistas matavam em nome do ideal psicótico e "estético" de "reformar" a humanidade para o milênio ariano. As bombas norte-americanas foram lançadas em nome da "razão". Na luta pela democracia, rasparam da face da Terra os "japorongas", seres oblíquos que, como dizia Truman, "são animais cruéis, obstinados, traidores". Seres inferiores de olhinho puxado podiam ser fritos como "shitakes".
A bomba agiu como um detergente, um mata-baratas, a guerra, como "limpeza", o típico viés americano de tudo resolver, rápida e implacável... E continua cozinhando na impaciência dos generais israelenses e dos falcões do Pentágono.
A destruição de Hiroshima foi "desnecessária" militarmente. O Japão estava de joelhos, querendo preservar apenas o imperador e a monarquia. Diziam que Hitler estava perto de conseguir a bomba - o que é mentira.
Uma das razões reais era que o presidente e os falcões da época queriam testar o brinquedo novo. Truman fala dele como um garoto: "Uau! É o mais fantástico aparelho de destruição jamais inventado! Uau! No teste, fez uma torre de aço de 60 metros virar um sorvete quente!..." O clima era lúdico e alucinado... o avião que largou a bomba A em Hiroshima tinha o nome da mãe do piloto - "Enola Gay". Esse gesto de carinho derreteu no fogo 150 mil pessoas. Essa foi a mãe de todas as bombas, parindo um feto do demônio, exterminando 40 mil crianças em 15 segundos.
Os norte-americanos queriam vingar Pearl Harbour, pela surpresa de fogo, exatamente como o ataque japonês três anos antes. Queriam também intimidar a União Soviética, pois começava a Guerra Fria; além, claro, de exibir para o mundo um show "maravilhoso" de som e luz, uma superprodução em cores do novo Império.
O Holocausto sujou o nome da Alemanha, mas Hiroshima soa como uma vitória tecnológica "inevitável". Na época, a bomba explodiu como um alívio e a opinião pública celebrou tontamente. Nesses dias, longe da Ásia e da Europa, só havia os papéis brancos caindo como pombas da paz na Quinta Avenida, sobre os beijos de amor da vitória. Naquele contexto, não havia conceitos disponíveis para condenar esse crime hediondo. A época estava morta para palavras, na vala comum dos detritos humanistas.
Hoje, a época está de novo morta para palavras, insuficientes para deter os fatos. Vale lembrar o poema de William Yeats, "The Second Coming", de 1919, diante do horror da Primeira Guerra...
"Tudo se desmancha no ar. O centro não segura/ a imensa anarquia solta sobre o mundo./ Terrível maré de sangue invade tudo e/ as cerimônias da inocência são afogadas./ Os homens melhores não têm convicção;/ e os piores estão tomados pela intensa paixão do mal.
(...)
Alguma revelação vem por aí;/ sem dúvida, é a Segunda Vinda.
(...)
Voltou a escuridão; e eu vejo que 20 séculos de sono de pedra/ Querem se vingar do pesadelo que lhes trouxe o berço de um presépio./ A hora chegou por fim;/ Que monstruosa fera se arrasta para Belém para renascer?/ É isso aí, bichos... Os grandes poetas são profetas".
fonte: Jornal O Globo (2o. caderno)
Agora, não temos mais a Guerra Fria; ficamos com a guerra quente do deserto - a mais perigosa combinação: fanatismo religioso e poder atômico. Vivemos dois campos de batalha sem chão; de um lado, a cruzada errada do Ocidente, apesar e além de Obama. Do outro, temos os homens-bomba multiplicados por mil. E eles amam a morte.
Hoje, já há uma máquina de guerra se programando sozinha e nos preparando para um confronto inevitável no Oriente Médio. Estamos num momento histórico, em que já se ouvem os trovões de uma tempestade que virá. Os mecanismos de controle pela "razão", sensatez, pelas "soft powers" da diplomacia perdem a eficácia. Instala-se um progressivo irracionalismo num "choque de civilizações", sim (sei do simplismo da análise do Huntington em 93, mas estamos diante do simplismo da realidade), formando uma equação com mil incógnitas impossíveis de solucionar. Como dar conta da alucinação islâmica religiosa com amor à morte, do Paquistão, Índia, Israel, do Irã dominado por ratos nucleares em breve, da invencibilidade do Afeganistão, com a hiperdireita de Israel com Bibi, com o Hamas ou o Hezbollah que querem impedir o "perigo da paz"?
"There is a shit-storm coming" - disse Norman Mailer uma vez.
Tudo leva a crer que algo terrível acontecerá. A crença na razão ocidental foi ferida por dois desastres: o 11 de Setembro e a invasão do Iraque. A caixa de Pandora que Bush abriu nunca mais se fechará.
Estamos às vésperas de uma brutal mudança histórica. Sente-se no ar o desejo inconsciente por tragédias que pareçam uma "revelação". Surge a fome por algo que ponha fim ao "incontrolável", a coisa que o Ocidente mais odeia. Mesmo uma catástrofe sangrenta parecerá uma "verdade" nova.
Vivemos hoje na era inaugurada por Hiroshima. Lá e em Nagasaki, três dias depois, inaugurou-se a "guerra preventina" de hoje. Enquanto o Holocausto dos judeus na Segunda Guerra fecha o século XX, motivado ainda por contradições do século XIX, o espetáculo luminoso de Hiroshima marca o início da guerra do século XXI. O horror se moderniza, mas não acaba.
Auschwitz e Treblinka eram "fornos" da Revolução Industrial, eram massacres "fordistas", mas Hiroshima inventou a guerra tecnológica, virtual, asséptica. A extinção em massa dos japoneses no furacão de fogo fez em um minuto o trabalho de meses e meses do nazismo.
O que mais impressiona na destruição de Hiroshima é a morte "on delivery", "de pronta entrega", sem trens de gado humano, morte "clean", anglo-saxônica. A bomba norte-americana foi considerada uma "vitória da ciência".
Os nazistas matavam em nome do ideal psicótico e "estético" de "reformar" a humanidade para o milênio ariano. As bombas norte-americanas foram lançadas em nome da "razão". Na luta pela democracia, rasparam da face da Terra os "japorongas", seres oblíquos que, como dizia Truman, "são animais cruéis, obstinados, traidores". Seres inferiores de olhinho puxado podiam ser fritos como "shitakes".
A bomba agiu como um detergente, um mata-baratas, a guerra, como "limpeza", o típico viés americano de tudo resolver, rápida e implacável... E continua cozinhando na impaciência dos generais israelenses e dos falcões do Pentágono.
A destruição de Hiroshima foi "desnecessária" militarmente. O Japão estava de joelhos, querendo preservar apenas o imperador e a monarquia. Diziam que Hitler estava perto de conseguir a bomba - o que é mentira.
Uma das razões reais era que o presidente e os falcões da época queriam testar o brinquedo novo. Truman fala dele como um garoto: "Uau! É o mais fantástico aparelho de destruição jamais inventado! Uau! No teste, fez uma torre de aço de 60 metros virar um sorvete quente!..." O clima era lúdico e alucinado... o avião que largou a bomba A em Hiroshima tinha o nome da mãe do piloto - "Enola Gay". Esse gesto de carinho derreteu no fogo 150 mil pessoas. Essa foi a mãe de todas as bombas, parindo um feto do demônio, exterminando 40 mil crianças em 15 segundos.
Os norte-americanos queriam vingar Pearl Harbour, pela surpresa de fogo, exatamente como o ataque japonês três anos antes. Queriam também intimidar a União Soviética, pois começava a Guerra Fria; além, claro, de exibir para o mundo um show "maravilhoso" de som e luz, uma superprodução em cores do novo Império.
O Holocausto sujou o nome da Alemanha, mas Hiroshima soa como uma vitória tecnológica "inevitável". Na época, a bomba explodiu como um alívio e a opinião pública celebrou tontamente. Nesses dias, longe da Ásia e da Europa, só havia os papéis brancos caindo como pombas da paz na Quinta Avenida, sobre os beijos de amor da vitória. Naquele contexto, não havia conceitos disponíveis para condenar esse crime hediondo. A época estava morta para palavras, na vala comum dos detritos humanistas.
Hoje, a época está de novo morta para palavras, insuficientes para deter os fatos. Vale lembrar o poema de William Yeats, "The Second Coming", de 1919, diante do horror da Primeira Guerra...
"Tudo se desmancha no ar. O centro não segura/ a imensa anarquia solta sobre o mundo./ Terrível maré de sangue invade tudo e/ as cerimônias da inocência são afogadas./ Os homens melhores não têm convicção;/ e os piores estão tomados pela intensa paixão do mal.
(...)
Alguma revelação vem por aí;/ sem dúvida, é a Segunda Vinda.
(...)
Voltou a escuridão; e eu vejo que 20 séculos de sono de pedra/ Querem se vingar do pesadelo que lhes trouxe o berço de um presépio./ A hora chegou por fim;/ Que monstruosa fera se arrasta para Belém para renascer?/ É isso aí, bichos... Os grandes poetas são profetas".
fonte: Jornal O Globo (2o. caderno)
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