quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Flip e as Novas Mídias

O Darnton analógico e o Darnton digital

A ideia de dividir a participação do historiador Robert Darnton na Flip em duas – nas mesas “O livro: capítulo 1”, ontem à noite, e “O livro: capítulo 2”, hoje de manhã – parecia boa, não só como forma de organizar a grande massa de informação trazida pelo convidado mas também como espelho de uma linha histórica que a presente revolução tecnológica quebra inevitavelmente em pré e pós: a primeira conversa foi dedicada à história do velho códex, o livro de papel, e a segunda voltada para os desafios impostos pela cultura digital. Bem, funcionou exatamente assim. O único problema é que os espectadores podem ter saído com a impressão de que o tempo do livro de papel era uma chatice e que toda a diversão vai começar agora, tal foi a disparidade de temperatura entre a primeira mesa, uma conversa de ares acadêmicos mediada pela historiadora Lilia Schwarcz, e a segunda, uma entrevista conduzida pela jornalista Cristiane Costa.

Diretor da Biblioteca de Harvard e pesquisador especializado no Iluminismo francês, Darnton teve ontem à noite a companhia de outro historiador dedicado à investigação da leitura, Peter Burke. Não por acaso, os dois estavam loucos por fazer pontes entre o passado e o futuro. Por exemplo, na questão dos direitos autorais, cuja flexibilização ambos defenderam como forma de ampliar o acesso ao conhecimento – Darnton qualificou de absurda a lei que fixa o início do domínio público em setenta anos após a morte do autor. No entanto, talvez preocupada em não invadir a seara da mesa seguinte, a mediadora os refreava. Ainda bem que alguma coisa escapou:

“Um desenvolvimento muito interessante na Wikipedia são os avisos de que tal artigo não merece inteira confiança, de que falta citar fontes, de que pode ter um viés político. Isso é importante porque ensina aos leitores que ainda não saibam disso que é preciso ler tudo com olhar crítico.” Peter Burke

“Não leio livros em máquinas. Nada contra, provavelmente devia estar fazendo isso. Respeito as pessoas que o fazem. Suas máquinas ficarão cada vez melhores e logo todo mundo estará usando, pelo menos para alguns propósitos. O futuro é digital, não há como evitar.” Robert Darnton

“Sou semi-otimista [sobre o futuro do livro], o que significa ser também semi-pessimista. Não acredito na morte do livro de papel nas proximas décadas, mas acho que sua importância vai diminuir. E talvez não só a do livro de papel, mas o do próprio livro como ideia. Os livros que sobreviverem tenderão a ser mais curtos. Me preocupo com o futuro dos grandes clássicos, especialmente os livros longos, como ‘Guerra e paz’. Não vejo as pessoas pegando o Kindle para ler um livro de mil páginas. Me preocupa que as novas gerações possam perder a capacidade de ler devagar. Eu acho que ler devagar, como cozinhar devagar, é muito importante para a civilização.” Peter Burke

A segunda mesa, hoje, reuniu Darnton e John Makinson, CEO da poderosa editora Penguin, que construiu seu império vendendo livros a custo baixo e que está entrando no mercado brasileiro em sociedade com a Companhia das Letras. Até por ter, assim, um pé na estratégia mercadológica de uma grande empresa, mas não só por isso, a conversa se abriu para o mercado editorial atual e acabou por tocar na maioria das questões que afligem editores, livreiros e autores.

Makinson rejeitou o paralelo entre a indústria do disco, ferida de morte pela onda digital, e a do livro. “Há grandes diferenças entre o livro e a música”, afirmou. “Havia uma fraude no mercado fonográfico, pois as pessoas nunca quiseram comprar discos, queriam comprar faixas, e foi isso Steve Jobs revelou com o iPod. Mas ninguém entra numa livraria e pede para comprar um capítulo. E há uma diferença no modo como o público se relaciona com o objeto: não é cool ter 35 mil livros no ebook, mas é cool ter 35 mil músicas no iPod.”

Darnton expôs um dado histórico tranquilizador para seu companheiro de mesa. “Este ano vai haver um milhão de livros impressos no mundo. Uma das lições que a história nos ensina é que uma mídia não precisa matar a outra para se instalar. Depois da invenção da imprensa, o manuscrito continuou existindo até século 18 ou mesmo o início do 19. Para tiragens até cem exemplares, era mais barato contratar escribas para copiar os livros do que imprimi-los. O futuro é digital, mas isso não significa que o códex esteja morto. Temos que inventar novas formas em que o livro analógico e o digital possam se ajudar um ao outro.”

Ambos se declararam mais preocupados com o futuro dos jornais impressos, estes sim ameaçados frontalmente pela onda digital. “Nenhum dos meus alunos lê mais jornal impresso”, declarou Darnton. Makinson acrescentou uma preocupação com a vitória da leitura orientada por mecanismos de busca, em que o leitor encontra apenas o que procura, sobre o hábito de folhear um periódico e esbarrar com informações que até então não imaginava pudessem interessá-lo. “Isso nos diminui como leitores”, disse.

Por outro lado, discordaram quanto ao receio da volatilidade inerente ao meio eletrônico. Darnton disse ter pesadelos literais com o desaparecimento de milhões de livros, provocado pela obsolescência de software, hardware e mecanismos de busca, enquanto Makinson deu de ombros. Já as novas possibilidades do livro – ou que nome a coisa venha a ter – para além da palavra escrita os entusiasmam de modo semelhante. Segundo Makinson, o mercado editorial terá que desenvolver novas habilidades para explorar a interação entre palavra escrita, áudio e vídeo. Darnton anunciou que seu próximo livro, sobre a transmissão oral de conhecimento em antigas canções francesas, estará disponível digitalmente acompanhado de música.

Não foram esquecidas as questões que têm despertado maior interesse midiático no campo de cada um: a crise deflagrada pelo agente literário Andrew Wylie, no caso de Makinson, e a batalha contra o Google, no de Darnton:

“Sobre o caso de Andrew Wylie, o principal agente literário do mundo, que decidiu abrir sua própria editora para publicar livros digitais dos autores que representa, meu ponto de vista é que, em primeiro lugar, os direitos físicos e os digitais nao devem ser divididos. Isso é melhor inclusive para o autor, pois permite à editora trabalhar de forma ampla as estratégias de promoção do livro. O segundo ponto complicado é que o acordo de Wylie é só com a Amazon, e minha experiência mostra que, quanto mais numerosos e diversificados forem os canais de distribuição, mais o livro vende. Dito isso, estou mais tranquilo com essa questão do que muitos de meus colegas, porque ela representa apenas um pequeno número de casos em que os direitos digitais foram excluídos dos contratos originais. Nós da Penguin deixamos claro que não contratamos livros cujos direitos digitais não venham junto. Mas me oponho à decisão de Wylie por uma questão de princípio.” John Makinson.

“Em primeiro lugar, devo dizer que admiro o Google, que fez coisas maravilhosas, e não quero soar como um D. Quixote. A digitalização do conhecimento é uma grande oportunidade e um grande risco. O Google já digitalizou cerca de 2 milhões de livros que estão em domínio publico. Não cobra pelo acesso e ganha discretamente com publicidade, mas isso não me incomoda. O que me preocupa é a comercialização do nosso patrimônio cultural. Na biblioteca de Harvard temos 14 milhões de livros. O Google nos procurou e propôs digitalizar tudo sem custo para nós, mas em troca eles nos cobrariam pela leitura em formato digital. Isso é inaceitável. Estão criando o maior monopólio já visto, um monopólio de informação. Não acho correto comercializar uma biblioteca que foi formada ao longo de séculos e deixar isso na mão de uma empresa que precisa gerar lucro para seus acionistas. A República das Letras, com seu acesso universal ao conhecimento, ideal do seculo 18, tem uma chance de ser tornada real no século 21, mas precisamos encontrar modelos que façam isso levando em conta o interesse público, não o privado.” Robert Darnton, muito aplaudido.



06/08/2010
às 12:38 \ Vida literária

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